terça-feira, 9 de novembro de 2010

Lembranças e Música

Há certas coisas terrivelmente ruins de serem expressas com palavras. Música seria algo ideal, realmente. Me surpreendo e temo como a música traduz... coisas. Bem, e as músicas que você estraga? São aquelas músicas que você relaciona com determinado evento-coisa e, tipo, elas são boas. Mas depois daquilo te derrubar e enfiar mil agulhas em brasa veia adentro ela só serve pra acender o braseiro. As agulhas você mesmo faz questão de enfiar e girar, torcer e escrever iniciais e pedaços da letra. Essas se perdem, pena, eram músicas muito boas.

As lembranças também são afetadas de forma semelhante. Não há como descrever certas lembranças. Para mim algumas se perdem, difusas, na névoa do esquecimento. Não gosto quando isso acontece, eu me pauto por muitos eventos do passado e as vezes eu percebo que ocorrem "remendos". Não são intencionais, mas acontecem. Uma lacuna numa memória é "remendada" com uma parte de outro evento ou uma parte inventada. Sempre é nas memórias mais dolorosas e marcantes. Por algum motivo, meu inconsciente deixou algumas memórias apodrecerem. São documentos valiosos dos quais eu não tirei cópia.

Por exemplo, eu me lembro do término do meu segundo namoro. Foi muito especial, porque foi o último namoro que eu tive. Quarenta dias antes eu me despedia dela num encontro da banda da escola no Cenoura Pastéis. Eu estava feliz, ela parecia estar, mas eu não aproveitei o momento. Não me senti feliz o suficiente. Se fosse hoje eu ia ver o sol de noite, todas as estrelas brilhando juntas, muito próximas da Terra. Essa parte não teve remendos de nenhuma espécie. Eu lembro dela no meu colo, eu beijava ela. Lembro de mãos dadas e um sorriso cheio de dentes. Lembro dela entrando no carro do pai dela.

Fui para a praia. A estada de duas semanas se estendeu para três. De três para quatro. De quatro para cinco e mais umas horas. Lembro de chamadas pro celular dela. Lembro da minha inocência de achar que sabia alguma coisa sobre relacionamentos e ficar dias sem ligar. Não lembro da viagem, deve ter sido igual a qualquer outra. Cheguei em Porto Alegre. Combinamos um encontro no Praia de Belas. Cheguei bem mais cedo, como de costume. Ela chegou e negou meu beijo. Sentou e disse algo que eu apaguei da memória. Isso já não era meu inconsciente, eu mesmo fiz isso voluntariamente. Deveria ser horrível.

Eu moro em Belém Velho há dezesseis anos, um bairro conhecido por ninguém conhecê-lo. É uma área rural de estradas de chão e cavalarianos com seus cavalos por toda a parte, pastando. Tem um córrego com uma ponte bonita perto da minha casa. Eu atravessei esse córrego depois de quatro horas de caminhada. Depois que ouvi a sentença, ela ficou segurando minha mão enquanto eu me segurava para não chorar no meio do shopping. A certa altura, ela cansou e foi embora. Resolvi ir também. Hoje descobri que minha casa dista quinze quilômetros e meio do maldito shopping, mas devo ter caminhado mais, por que segui o único caminho que eu conhecia, o do ônibus, que não é o mesmo do Google Maps.

Apesar do murro que tinha levado, me empolguei. Sempre gostei de fazer coisas idiotas, mas nunca tive motivos pra nenhuma delas. Agora eu tinha. Estava de cuturnos, na época eu só usava cuturnos pesados com duas meias para não fazer bolhas. Eu testaria minha resistência. Comecei a caminhar e na Padre Cacique ainda estava intoxicado com o que havia acontecido. Na frente do Tesourinha, eu acho, tinha um encontro de evangélicos. Poderia ter matado todos facilmente se não fosse um covarde acuado porque tinha terminado com a namorada. Enquanto eu caminhava, pensava coisas assim.

Dessa parte até o morro da Glória eu só lembro da música que eu estraguei. Era uma música que a maioria das pessoas não iria gostar. Odiosa e rápida ela passava na minha cabeça traduzindo perfeitamente tudo o que eu sentia. Ainda ouço ela às vezes. Na hora dos dois solos finais me vem a imagem que tinha do alto do morro da Glória. Agora é um monte de casas de alvenaria rejuntada onde mora um pessoal relativamente carente. Eu havia transformado aquilo numa paisagem onde o sol morria, a luz dele sangrando por cima do cume do morro oposto ao meu. Foi lindo. Também foi necessário.

Depois, apesar de faltar quase metade do caminho, eu cheguei em casa rapidamente, e a música foi estragada de uma vez por todas.

Não sei se meu inconsciente amputou essa lembrança pro meu bem, mas cheguei num ponto que não sou mais capaz de saber o que é melhor para mim. Outro poder arrasador de uma lembrança é o fato de arrastar junto com ela muitas outras do mesmo teor. Depois, vem as músicas e as agulhas em brasa e o estrago vai estar completo por dentro. Eu não tive vontade nenhuma de escrever isso. Mas se não fizesse, talvez fosse pior.

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