sábado, 10 de abril de 2010

Arrepios

Sinto muitos arrepios. O mais estranho, é que eu dividi eles de acordo com o que eles me passam. Tenho vários rótulos hoje, nem todos dá pra ler e eu já esqueci o que muitos deles significam. Outros eu deixei de usar há tanto tempo, que parecem bastante desinteressantes e lhes resta apenas o esquecimento como destino. De todos, lembro de poucos, e uso só um hoje.

Antes de seguir: qualquer semelhança com o romance "O Perfume" do Süskind é mera coincidência, li o livro há cerca de dois anos atrás e fiquei meio apavorado com o excesso de semelhanças, vou ver se ainda falo disso.

Me lembro que organizei e dividi eles quando era bem guri. Pequeno mesmo. Claro, na época eu não conseguia rotular eles de forma devida. Eles não tinham nomes. Eram singulares e próximos uns entre os outros apenas pela quantidade de serotonina que me faziam liberar. Quando resolvi me exilar das coisas, ficando dentro de mim mesmo, revisei os mais importantes, busquei os seus gatilhos, ações que faziam eles funcionar e, deliciosamente, aplicava conforme as ocasiões surgiam.

Os arrepios evoluíam no meu cérebro. Eu procurava proximidades entre eles e existiam ordens de importância. Alguns produziam mais que outros e eu usava esses com bem mais frequência, incrementando e transformando-os em coisas novas, as vezes longe mesmo das esferas dos arrepios. Os velhos e não usados, morriam, incapazes de seres guardados ou transcritos pro papel. Um deles era o "Menina com Pinha" como chamei ele, quando passei eles a limpo. Eu estudava num colégio público na época. Não lembro minha idade, mas foi antes da 6ª série quando troquei de sistema de ensino. Era época de pinhas, pinhão saca? Eles tinham espinhos e a gente ficava tocando uns nos outros, mas elas nao machucavam por causa das roupas grossas de inverno. Claro, as vezes algumas davam no rosto ou algo assim, mas não era grave, ao menos não parecia para nós. Arremessávamos eles até que a ponta dos espinhos desfolhasse e ele ficasse leve e inútil, impedindo qualquer arremesso. Me lembro que estávamos todos brincando assim, organizados em "gangues" e jogando pinhas uns nos outros.

Eu joguei uma pinha totalmente gasta tentando acertar alguém, mas ela voôu débil da minha mão e caiu pra frente, esquecida no meio da fúria guerreira que acometia as crianças. Então uma menina, uma guria que não recordo mais como era, pegou a pinha e ficou olhando pra ela. Ela não me olhou, então não sabia quem tinha jogado, se é que se preocupou em saber. Ficou olhando por uns longuíssimos quinze segundos, interessada a fundo, ate que alguém chamou ela e ela jogou a pinha no chão e correu pra longe dali. Eu tinha olhado ela durante todo esse tempo, sentindo um arrepio tremendo.

Me dei conta disso na hora em que ele terminou, deixando um rastro de pelos eriçados na minha nuca. Não tinha nada a ver com sexo oposto ou uma possível precocidade hormonal. Eu olhava assim pras pessoas procurando arrepios simplesmente porque gostava (e ainda gosto) de sentir os arrepios. Puro deleite pessoal. Fui até lá e peguei a pinha, procurando o que teria sido. O que foi que eu tinha perdido? Eu procurava o gatilho da coisa, o botão que fazia aquilo funcionar, mas a pinha não tinha nada, estava vazia agora. Deserdei do campo de combate atrás da menina, procurei ela por todo o lugar, mas não achei, nem nunca mais acharia. Como um fantasma, ela me deu o arrepio e sumiu.

Esqueci dela, mas a situação prosseguiu, ainda na mesma escola. Eu tinha notas ruins, não conseguia focar atenção na aula, era chato demais. Naturalmente, fui parar no gabinete da sócio-educadora que trabalhava lá. Ela pediu que eu levasse meu caderno de aula. Cheguei lá e senti uma atmosfera diferente, algo novo, que só as crianças conseguem perceber de forma distinta e lhes falta palavras pra descrever como é. Ela me disse que sentasse e comecei a sentir arrepios. Perguntou meu nome e arrepios. Em que ano eu estava e arrepios. Quantos anos tinha e arrepios. A sala e as janelas estavam mudas e a voz dela ecoava na minha cabeça, arrepiando. Ela pegou meu caderno e, começou a folhear as páginas dele, me perguntando coisas. Eu já não conseguia responder com coerência, eu só olhava para a ação, embabascado e arrepiando como nunca antes. Ela falava que minha letra era ruim, que eu tinha que fazer caligrafia e fechou meu caderno de capa azul, encerrando bruscamente meus arrepios. Não lembro de mais nada depois que ela fechou o meu caderno, era como se tudo o que fosse importante na entrevista tivesse acabado no momento que ela me entregou ele. Me lembro da cor oliva das paredes, do céu nublado com neblina na rua, da cara da sócio-educadora, do batom que ela usava! Depois do caderno fechar, nada mais era importante lá. Esse foi o arrepio mais marcante da minha vida, e lembro dele com carinho. Saí de lá extasiado: eu achara o gatilho daquele arrepio tão... completo.

Foram de longe, os melhores arrepios que eu tive, na sala . Me dei conta que as pessoas precisavam observar, manusear algo que eu tinha tocado, que era MEU. Eu também tinha que ficar mudo, quieto demais, concentrado 100% na ação da pessoa, empedrando e virando estátua. Aos poucos eu aprendi a acionar ele, e admito, foi muito divertido! Eu pegava livros da biblioteca e mostrava para as professoras: "Hei, olha esse livro profe!" Ela folheava ele de forma displicente, me deixando louco. Deixava cair coisas minhas no chão, para as pessoas pegarem e examinarem. Esquecia elas em cima da classe, para que me devolvessem...

O realmente interessante disso, é que eu não consigo mais sentir arrepios com a frequência de antes. Por um bom tempo, não fui capaz de sentir arrepios. Os gatilhos aos poucos se tornavam fracos, desgastavam com o uso conforme eu achava coisas pra fazer, isso matava eles um pouco mais porque eu precisava de tempo, lembrando a situação, os botões que faziam eles funcionar. Isso me entregava num furor autista delicioso, me arrepiando só com as lembranças, hoje, não tenho muito tempo para isso. Outra coisa interessante, é que eu conseguia tornar válido um arrepio ou não, analisando ele.

Se eu pensasse: "pinhas idiotas, qual é a graça nelas?", automaticamente, "Menina com Pinha" não funcionava. No começo foi bastante interessante, mas aos poucos eu não conseguia reativar eles de novo, e em breve, só conseguia desativar eles, viciado em pensamento. Eu pensava "se eu pensar, que menina com pinha é ruim, vou cancelar esse arrepio e nunca mais sentir ele de novo", e isso efetivamente acontecia, por mais incrível que possa parecer. Perdi não só arrepios por vício de pensamento, mas já tomei atitudes erradas e tirei conclusões equivocadas por causa disso.

Hoje eu só sinto os arrepios antigos de forma muito, muito gasta. Descobri um novo, que acontece quando estou ouvindo música, mas não vou escrever ele porque posso acidentalmente criar um vício de pensamento. E sim, é imbecil, mas não quero mais perder arrepios. Quando tudo estiver errado eu vou só sentir arrepios e vou ficar bem.

Ultimamente, tenho me esforçado num pequeno projeto subliminar: a pesquisa de arrepios. Eu relembro eles até a exaustão, tentando sentir alguma coisa, incentivando com condições que me façam sentir arrepios naturais. Como o frio. Antes de dormir, me tapo bastante e ligo o ventilador. Me concentro, reviro o acervo da memória e me exponho um pouco ao vento. O arrepio do vento me ajuda a encontrar os arrepios no arquivo. Por essas e outras coisas, as vezes eu mesmo me considero louco, doente, mas me sinto muito, muito bem, e não consigo me imaginar de forma diferente.

Aos poucos consegui encontrar alguns arrepios, mas no combate com as outras obrigações, perco eles de novo, eles fogem de mim. Acho que estou ficando velho pra arrepios, mas vou achar alguma tática que conecte as coisas, lá dentro. Uma delas, foi esta. Escrever isso, me lembrar da escola, foi muito bom. Tive muitos arrepios.

Um comentário:

  1. Esse lado "arrepiante" eu não conhecia em ti
    Demorei para observar cada arrepio, mas valeu a pena, porque sempre era um ir e vir, cheio de vida e... arrepios de novo! haha
    Bah, Fifi, tenho a impressão de que elogios não vão adiantar muito, pelo caráter autobiográfico que esse post tem, mas ficou um tremendo conto! Um dia quero escrever que nem tu *...* hahaha
    te adoro, guri
    continua escrevendo que vou acompanhar \o

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